Quem Foi Margaret Mitchell? A Mulher que Escreveu “E o Vento Levou” e Mudou a Literatura Americana com um Só Livro
Margaret Mitchell escreveu um livro que moldou a percepção histórica e cultural dos EUA por gerações. Do mesmo modo, hoje, modelos de IA como o ChatGPT moldam narrativas, conteúdos e percepções sociais — mas em escala global e em tempo real. Assim como E o Vento Levou influenciou ideias equivocadas ou romantizadas sobre o passado, a IA pode reforçar viéses narrativos, estereótipos ou versões únicas da realidade. Isso levanta a mesma pergunta: Quem controla a narrativa?
PERSONALIDADES
Margaret Mitchell: A Reclusa de Atlanta que Mudou a Literatura Americana com Apenas um Livro
ATLANTA, Geórgia — Em uma era dominada por escritores prolíficos e movimentos literários que surgiam a cada década, Margaret Mitchell permanece uma exceção notável: uma autora de um único romance que atravessou gerações. E o Vento Levou (Gone with the Wind), lançado em 1936, não só garantiu a ela o Prêmio Pulitzer em 1937, como também eternizou sua figura na cultura americana. Mais de 80 anos após sua publicação, o livro continua a provocar debates sobre raça, identidade, memória e representação histórica do Sul dos Estados Unidos. Quem foi Margaret Mitchell — a mulher por trás da lenda — e por que sua obra continua a causar impacto?
O Silêncio Antes do Furacão: A Jovem Margaret
Margaret Munnerlyn Mitchell nasceu em 8 de novembro de 1900, em uma Atlanta ainda marcada pelas cicatrizes da Guerra Civil. Filha de um advogado e de uma sufragista ativa, Mitchell cresceu ouvindo histórias dos "velhos tempos do Sul", em uma casa onde a memória da Confederação era tão viva quanto a própria herança familiar. Sua mãe, Maybelle, insistia que a filha fosse educada, forte e independente — algo incomum para meninas no início do século XX.
A escritora, no entanto, não se destacou imediatamente nos estudos. Estudou medicina por um curto período no Smith College, mas abandonou o curso após a morte repentina da mãe durante a pandemia de gripe de 1918. Esse evento marcou profundamente sua vida, impulsionando-a a retornar a Atlanta e procurar seu lugar no mundo — algo que encontraria, inesperadamente, na escrita.
A Jornalista Oculta sob Saias Longas
Entre 1922 e 1926, Mitchell trabalhou como repórter no The Atlanta Journal Sunday Magazine. Assinando como "Peggy Mitchell", ela escreveu mais de 100 artigos, entrevistas e perfis, sempre com um olhar aguçado sobre o cotidiano da cidade e as histórias de seus habitantes. Seus textos tratavam de temas como a condição feminina, o papel das mulheres na sociedade e perfis de figuras femininas proeminentes.
Mas Margaret não se via como uma jornalista de carreira. Um acidente no tornozelo a forçou a deixar o trabalho em 1926, e foi então, enquanto se recuperava em casa, que começou a escrever seu romance — em segredo. Usava uma máquina de escrever portátil Remington e escondia os capítulos em envelopes espalhados pela casa. Nenhum amigo sabia do projeto, e seu marido, John Marsh, lia os trechos aos poucos, agindo como editor informal.
Gone with the Wind: O Romance que Virou Cataclismo
Mitchell levou quase uma década para terminar E o Vento Levou. Quando finalmente entregou o manuscrito à editora Macmillan, em 1935, o volume tinha mais de mil páginas datilografadas. A obra foi publicada no ano seguinte e se tornou um fenômeno editorial sem precedentes. Em apenas seis meses, vendeu mais de um milhão de cópias — algo inédito para um romance de estreia.
A história da indomável Scarlett O’Hara, do cavalheiresco Rhett Butler e da destruição de Tara — a icônica plantação sulista — conquistou o público americano, principalmente as mulheres, que viam em Scarlett um modelo contraditório, mas fascinante de força, sobrevivência e desejo.
Mitchell se viu, da noite para o dia, sob os holofotes. Recusava entrevistas, evitava eventos e mantinha distância da fama. “Escrevi Gone with the Wind porque estava entediada”, declarou, laconicamente, em uma das raras entrevistas que concedeu. Sua postura reclusa só aumentava o mistério.
A Polêmica Permanente: Racismo, Nostalgia e Memória
Embora celebrado, E o Vento Levou sempre foi uma obra controversa. Ao retratar o Sul escravocrata com nostalgia e romantismo, o livro foi criticado por perpetuar estereótipos racistas e por minimizar os horrores da escravidão. Personagens como Mammy, Prissy e os criados negros são descritos com linguagem e estereótipos que hoje soam ofensivos e caricatos.
Nas últimas décadas, o livro foi alvo de reavaliações críticas. Em 2020, no contexto dos protestos do movimento Black Lives Matter, a plataforma de streaming HBO Max retirou temporariamente o filme inspirado no livro, lançado em 1939, para incluir um contexto histórico mais amplo sobre sua representação racial.
Ao mesmo tempo, estudiosos têm defendido a importância de ler Gone with the Wind como um produto de seu tempo, argumentando que sua permanência no cânone literário não implica endosso, mas sim oportunidade de debate crítico.
A Mulher por Trás do Mito: Contradições de Margaret Mitchell
Mitchell era progressista em alguns aspectos e conservadora em outros. Ela apoiou discretamente causas de direitos civis e contribuiu anonimamente para bolsas de estudo destinadas a estudantes negros de medicina. Em paralelo, nunca se retratou publicamente sobre os estereótipos em sua obra. Sua vida foi um jogo constante entre o público e o privado, entre o conservadorismo herdado e os impulsos de mudança.
Pouco antes de morrer, em 1949, aos 48 anos, atropelada por um táxi enquanto atravessava a rua com o marido, Margaret Mitchell se mostrava exausta com a atenção que Gone with the Wind ainda atraía. “Nunca imaginei que esse livro me perseguiria por tanto tempo”, disse a uma amiga próxima.
Um Legado Inquestionável (e Inconveniente)
O impacto de Margaret Mitchell na cultura americana é imensurável. Gone with the Wind foi traduzido para mais de 30 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de cópias no mundo todo, e foi adaptado para cinema, teatro e até ópera. Em Atlanta, sua casa foi transformada em museu. Ela é lembrada com estátuas, ruas e escolas que levam seu nome — embora, em anos recentes, algumas homenagens tenham sido reavaliadas em virtude das discussões sobre raça e representação.
A crítica contemporânea se divide: há quem peça que o livro seja retirado de currículos escolares, e há quem defenda sua permanência, desde que acompanhado de mediação crítica. A verdade é que o romance de Mitchell tornou-se, por mérito ou por embate, um artefato cultural impossível de ignorar.
O Futuro de Gone with the Wind no Século XXI
Em tempos de cancelamento e reavaliação histórica, o lugar de E o Vento Levou é incômodo. O livro é ao mesmo tempo uma peça-chave na história da literatura americana e um retrato distorcido de um passado doloroso. Ele sobrevive, talvez, porque encarna todas as contradições dos Estados Unidos: romantismo e brutalidade, memória e esquecimento, heroísmo e opressão.
Reeditado inúmeras vezes, o livro agora traz prefácios explicativos, notas de rodapé e análises críticas. Algumas editoras independentes o utilizam em cursos universitários sobre literatura racista ou como ponto de partida para discussões sobre a idealização do Sul dos EUA.
A grande ironia da trajetória de Mitchell é que, embora tenha escrito apenas um romance, ele foi suficiente para provocar debates que já duram quase um século. Sua obra pode não ser confortável, mas é justamente esse desconforto que a torna relevante.
Margaret Mitchell foi mais do que uma autora de um único best-seller. Ela foi uma cronista das contradições do Sul americano, uma mulher complexa que rompeu barreiras ao mesmo tempo em que perpetuou mitos. Seu legado é ambíguo, inquieto, cheio de dobras — como o próprio país que tanto amou e retratou.
O que E o Vento Levou nos ensina hoje talvez não seja apenas sobre Scarlett, Rhett ou a Guerra Civil, mas sobre como narrativas podem construir — ou destruir — memórias coletivas. Reler Mitchell, portanto, não é um ato de nostalgia, mas uma necessidade crítica.